Folha de São Paulo - 28/01/2001
INTOLERÂNCIA Mistura de preconceito e conservadorismo religioso deixa as dançarinas na mira da polícia moral egípcia Egito censura o ventre na dança do ventre PAULA SCHMITT ESPECIAL PARA A FOLHA, DO CAIRO Mais uma noite de dança do ventre no Nilo, em um dos vários barcos que navegam o rio enquanto os clientes jantam e apreciam o show. O barco se move. A Torre do Cairo desponta pela janela, o prédio da Rádio e Televisão Egípcia passa devagar, o Ministério das Relações Exteriores mostra orgulhoso o junco faraônico que decora as suas colunas. No bufê, falafel, tabule, kafta. A música árabe avisa aos comensais que a dança do ventre vai começar.Nada pode ser mais egípcio. Ou pode? No palco, uma mulher ruiva, de olhos azuis e pele alvíssima mostra o que é que a norueguesa tem. Majken Waerdahl -ou Hanin, para o público- tem 27 anos e dança há seis. Assim como outras estrangeiras, Hanin conseguiu unir prazer e trabalho ao vir para o Egito e ocupar o lugar de uma espécie que já está se tornando raridade: a "legítima" dançarina do ventre. O desaparecimento das egípcias nessa arte tem causas não confirmadas, mas cada dia mais evidentes. O motivo principal parece ser uma mistura de preconceito com conservadorismo religioso. Segundo Farida Fahmy, diva do folclore egípcio, ex-bailarina e mestre em etnologia da dança, o país tem uma "relação de amor e ódio" com a dança do ventre. "Os egípcios podem até ir ao show, mas vão sempre olhar as dançarinas com menosprezo." A própria Farida deixa escapar um desprezo todo seu: "Nosso grupo de dança folclórica mostrava a dança do ventre com decência e arte, não com o intuito de seduzir". Farida explica que as egípcias "nascem com a dança do ventre no sangue", mas são imediatamente dissuadidas do hábito. "Enquanto a filha tem 6 anos ou 7 anos de idade, a mãe acha bonitinho vê-la dançar. Mas, assim que a menina cria corpo, a mãe proíbe a filha dizendo que aquilo é indecente." A repressão não fica só no âmbito familiar. A Adab, ou "polícia moral", faz incursões por hotéis e casas noturnas para se certificar de que as dançarinas estão cumprindo o seu código de bons costumes. As restrições são tantas que a dança do ventre pode em breve se tornar dança do pescoço, a única parte do corpo que parece ter sido esquecida pelos censores. De acordo com a Adab, as dançarinas não podem deixar as coxas à mostra e, num desafio à semântica, não podem mostrar o ventre. A região que vai da cintura ao seio é usualmente coberta com uma rede ou meia fina, qualquer coisa que pareça cumprir a lei. Algumas dançarinas preferem cobrir-se por completo. "Eu não me arrisco, cubro tudo e me livro de ser mandada para a cadeia", explica Hanin. A inglesa Francesca Sullivan, dançarina do ventre e jornalista, explica que nos hotéis cinco estrelas, ao contrário dos cabarés, ainda é possível burlar a lei. Mesmo assim, muitos hotéis preferem não arriscar. "Os policiais vêm aqui e multam a gente", explica Hisham Abdelaziz, gerente do cinco estrelas Semiramis. Como o ventre deixou de ser a atração principal, vale tudo para entreter o público. Completamente coberta com seu vestido vermelho, a dançarina Sohair tentava animar o público balançando um deslocado guarda-chuva, lembrando mais o frevo do Nordeste brasileiro do que qualquer expressão cultural do Egito desértico. As consequências já são visíveis. De acordo com a Autoridade de Arte Egípcia, em 1957 havia cerca de 5.000 dançarinas do ventre profissionais. Atualmente apenas 380 estão registradas. E o registro é feito junto à Adab, a polícia moral, não nos sindicatos -dançarinas do ventre não têm representação. Para o empresário Omar Said, muçulmano que não bebe, não fuma e reza cinco vezes por dia, "a atmosfera geral do país está conduzindo a nação para o fundamentalismo religioso e a intolerância". Para Said, arte e religião não deveriam se misturar. "O Islã, por exemplo, não admite o culto a imagens, mas nem por isso nós vamos destruir as estatuas faraônicas." Se por um lado o Egito está diminuindo a produção de dançarinas locais, o país continua sendo o centro mundial para a exportação da técnica. Em meados do ano passado, a professora de dança do ventre Rakeia Hassan reuniu 170 dançarinas do mundo inteiro para uma oficina de dança do ventre. Entre elas, alunas e professoras de Estados Unidos, Itália, Noruega e nada menos que 35 professoras do Japão. A excelência na dança do ventre, porém, parece estar com as egípcias. Para Francesca Sullivan, estrela da dança do ventre, loira e relativamente famosa, as egípcias vão ser sempre melhores. "Elas têm um jeito de se comunicar com a platéia, uma empatia que é essencialmente egípcia. Tem a ver com a linguagem corporal da cultura deles, gestos, músicas, letras. A dançarina e a platéia partilham do mesmo subtexto". A professora Rakeia concorda. Em meio a 15 alunas francesas -donas-de-casa, empresárias e estudantes- que vieram ao Egito exclusivamente para duas semanas intensivas de dança do ventre, Rakeia ecoa o que foi repetido por todas as 11 dançarinas profissionais estrangeiras entrevistadas para esta reportagem. "O ritmo das egípcias está no sangue. É o mesmo que eu tentar sambar. Você acha que eu vou sambar como uma brasileira?" ***A Estrutura dos Shows no Meio OrienteCom milhares de luxuosos e sofisticados night clubs espalhados por diversos países, o Meio Oriente tem alto nível de sofisticação nos seus shows. As bailarinas tem sempre que estar se renovando e investindo nos seus shows. A começar pelo guarda roupa: estilistas renomados da alta costura assinam os modelos que são renovados a cada temporada.As músicas são feitas por compositores famosos especialmente para as bailarinas. A orquestra tem no mínimo seis músicos. Os ensaios são conduzidos pela bailarina : ela é quem dá a acentuação do ritmo nas músicas segundo seu gosto pessoal e seu estilo.Ela também tem cantores para dar voz às interpretações. As vezes se usam grupos de bailarinos dançando dabke, saidi e danças folclóricas como apoio ao show da bailarina, na mesma noite podemos assistir a uma estrela da dança seguida de um dos grandes cantores do mundo árabe: Jorge Uassuf, Rágheb Aleme, Mel-hem Barakat, Noal El Zoghbi. Outras vezes, a bailarina e seu grupo são a única atração do night club, nesse caso a responsabilidade da bailarina aumenta , pois ela juntamente com seu grupo de bailarinos cantores e orquestra tem que prender a atenção do público pelo espaço de mais de duas horas.
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